Prepare-se para ser transportado para uma época de sonhos e aventuras! O texto 'O Grande Voo', do talentoso autor Lucas Lima, é uma homenagem à cidade de Camocim e à sua rica história. Publicado na Antologia 'A Centelha, Vol. 2', este conto nos leva a uma jornada emocionante, repleta de imagens vívidas e personagens memoráveis. Acompanhe-nos enquanto descobrimos o mundo de Ícaro e seu encontro transformador com o aviador Euclydes Pinto Martins.
by: Lucas Lima
O GRANDE VOO
A luz do entardecer entrava fraca pela janela que rangia e um pintor contemplava o seu quadro favorito através dela como uma moldura viva. Ícaro era uma figura importante no meio artístico e seus quadros foram além das areias brancas de Camocim. No seu aniversário de setenta e cinco anos, apesar de ser reservado à vida pessoal, aceitou o convite de um jornal modesto para uma entrevista. Havia uma coisa que ele guardava consigo todos aqueles anos por medo de que, ao pronunciar as saudosas lembranças, elas lançarem voo assim como fez o seu herói e desaparecessem para sempre.
Seu Ícaro pensou: Já não achava mais certo prendê-las numa gaiola. “O que significa este quadro?” Perguntou o jornalista apontando para o centro da sala de estar onde dois personagens, emoldurados numa tela requintada, admiravam o mar calmo de uma alvorada e um avião distante que enfrentava o céu infinito.
“Ah! Muito bem… Aquela é a minha primeira criação. A cidade estava em festa e todos os aguardavam, então…” Seu Ícaro deitou no tucum e, olhando para o teto, teceu o fio das lembranças sobre o dia que o levou para uma vida extraordinária. Era um dia que doía a vista. Dezenove de dezembro de 1922. Ícaro, aos doze anos, banhava-se na água azul e salgada para afugentar o calor sem pressa de voltar para casa, pelo menos até o estômago reclamar. A mãe, que uma hora daquela acabara de aprontar o almoço, aguardava no parapeito da porta pelo menino desobediente e o marido arruaceiro. E então, na linha do horizonte, viu o avião destemido, em desafio ao azul intocável.
A cidade estava agitada como nunca antes. Moças muito bem-arrumadas caminhavam depressa para o cais, pescadores falavam alto sobre o grande acontecimento que tumultuava aquela terra pacata e senhoras animadas especulavam formando uma multidão à beira mar. Todos queriam ver os homens que cruzavam o Atlântico vindo de Nova York para o Rio de Janeiro, entre eles o brasileiro Euclydes Pinto Martins. Ícaro pousou próximo a dois senhores que conversavam indiferentes à situação.
— Uma trupe de americanos. Resmungou um deles.
— E um brasileiro- Informou o outro. - nascido aqui.
— É… Vi no jornal. Baboseira… O barulho do motor cortou o ar e os gritos sacudiram a terra. O menino entusiasmado, ficou à frente dos dois senhores e bramiu.
— Seus patifes! Não dão conta? Olhem para cima. São os heróis do Brasil! E correu ao avistar seu pai entre os importantes da cidade, mas não tão rápido para livrar-se de um cascudo. No ombro do pai, o garoto encantava-se com aqueles personagens no ar e quando finalmente pousaram, tão intenso foi o seu desejo de se sentir como o co-piloto, o qual acenava orgulhoso e impávido.
Pinto Martins se tornou o seu herói naquele dia e precisava apertar sua mão. “Volte para casa” Disse o pai, contrariando suas ideias. “E diga a sua mãe que vou em um instante”. Quando regressava, ele arquitetou muitos planos para realizar a façanha e viu uma oportunidade quando pegou o cronograma anunciado no jornal graças a uma vizinha. Mas como um pirralho entraria em um evento como aquele? E sozinho, ainda por cima, uma vez que sua mãe não interessava-se pelas festividades e, de qualquer forma, não poderia sair com um bebê de colo. No entanto, Ícaro tinha pontos a seu favor; ele era um pingo de gente danado de se perder de vista.
E então, aproveitando que a mãe cuidava da irmã mais nova, saiu em disparada até o prédio imponente quando anoiteceu segurando o jornal com as mãos trêmulas e suadas na página em que dizia que toda a sociedade camocinense estava convidada para o momento solene seguido de um grande baile. Primeiro procurou o pai na esperança de conseguir entrar, depois tentou convencer alguém a acobertá-lo. Mas no fim, seu bilhete de entrada acabou sendo uma artimanha do destino na forma de um bichano preto, o qual não parecia importar-se com as barreiras impostas.
— Meu gato! — gritava — meu gatinho entrou aí, eu preciso pegá-lo. Por favor!
— Onde estão os seus pais, menino? — Ali, logo ali.
— Então chame eles, não poderá entrar sozinho.
— Mas aqui diz toda sociedade camocinense e meu gatinho nasceu aqui. Tenho certeza, e eu também. Por favor, ele não sabe voltar sozinho pra casa. Será rápido! As simpáticas senhorinhas à porta não conseguiram dizer não e logo Ícaro espremia-se entre o aglomerado à procura de Euclydes. Não demorou para que ele e as demais autoridades fossem anunciadas e então, no parapeito de uma grande janela e ao lado do bichano cinza, Ícaro aguardou, ansioso, por uma chance de aproximação. No entanto, o momento solene deu lugar ao baile e o seu sonho ficou cada vez mais distante, ainda mais quando sentiu a mão de seu pai o puxando para baixo pelo calcanhar.
Estava encrencado. Mas o garoto não era capaz de imaginar a surpresa que o destino ainda lhe reservava. Na manhã seguinte, ele levantou antes do sol nascer para acompanhar o pai que saia para o mar. Enquanto preparava a canoa, não deixou de imaginar que muito em breve eles navegariam juntos e aquele seria seu trabalho permanente. Naquele instante, um homem sentou-se na areia a poucos metros. Ícaro deu um salto.
— O senhor!- Exclamava - O senhor é o aviador! Ícaro não conseguiu esconder sua felicidade.
— O que faz aqui?
— Bom, eu precisava de alguns minutos de silêncio antes de voltar ao Sampaio Corrêa. Aquele motor acaba com os meus ouvidos. Algumas vezes sinto vontade de pular na água. - O co-piloto olhou em volta. Na praia apenas poucos pescadores que pareciam não notar a presença da celebridade.
— e você, o que faz tão cedo?
— Ah! Eu vim ajudar o meu pai. Se eu soubesse que você apareceria aqui, não teria perdido tempo na festa. E ainda fiquei com o couro quente.
— O que você queria dizer a mim?
— Na verdade nada… Quer dizer, só apertar a sua mão e falar… É… Falar que é uma honra. Euclydes estendeu a mão com um sorriso genuíno - E qual a sua graça?
— Ícaro, muito prazer! — Ah! Como o personagem da mitologia.
— Eu já li a história dele… Mas não sou igual a ele. Nem a você.
— E como você é? — Um pescador, como o meu pai. E vou ser a minha vida toda.
— Eu também já fui assim… O mar me proporcionou muita aventura, sabia? Eu tinha a sua idade quando comecei a navegar com o meu pai. Eu adorava. Bom, até o dia que isso causou um acidente grave e obrigaram-me a evitar trabalhos perigosos.
— Mas voar é mais perigoso que navegar, não é? Euclydes riu e lembrou das situações que passou durante sua empreitada. Tempestades, perigos, uma pororoca… e agora um garoto afiado que tinha razão. — É tão perigoso quanto. Mas não consegui ficar parado sabendo o que eu sei.
— O que?
— Que eu estou destinado a fazer algo realmente importante. Extraordinário.
—Pensei que o senhor fosse piloto desde sempre.
—Na verdade eu sou um aventureiro desde sempre, meu amigo.
—Sabe, senhor Euclydes, eu acho mesmo isso extraordinário. O jornal disse que você nasceu aqui. É verdade?
— Isso mesmo! Mas não tive a chance de crescer aqui, igual a você. Todavia, agora, sinto-me em casa. — Um dia eu quero fazer uma aventura. O senhor acha que vou ter aventuras no mar igual as suas?
— Eu aposto o meu hidroavião que sim. Euclydes olhou para o horizonte que se iluminava, logo retomaria a jornada do Raid- New York - Rio de Janeiro, mas não queria ir antes de falar algo que o garoto jamais esqueceria. Uma inspiração. A vida é tão curta, afinal de contas, para enfrentar um oceano sem saber ao certo o propósito disso. Que boa decisão tomou ao pousar na sua terra natal, pensou.
— O mar me levou aos céus, meu amigo, e os céus para onde eu jamais imaginaria. Quem sabe um dia você faça suas próprias asas de cera de abelha e penas de pássaro e parta rumo a novos horizontes. Mas ouça bem, não importa para onde queira voar, não deixe de ouvir os conselhos de seus pais, eles sempre serão as nossas bússolas.
— E tocou o ombro do garoto em um ato de despedida. Ícaro emergiu das lembranças após um mergulho profundo.
— E ali está… — disse ao tocar a tela
— …Euclydes conversando com um garoto qualquer antes de partir. Aposto que você não vai encontrar isso em nenhum jornal. Não lembram nem o que ele fez de importante, quiçá um momento bobo desses… Bom, o fato é que eu não fazia ideia de qual era o meu propósito e ele me fez prometer que encontraria. E então, pensando em eternizar meu encontro com ele, peguei um lençol branco da minha mãe e umas tintas do papai e… Não é que eu levo jeito? Eu pensei.
E pintar se tornou as minhas asas de cera de abelha e penas de pássaro. Pendurei para que Euclydes pudesse ver quando retornasse. Ele não voltou, é claro, mas eu continuei voando. Passava das nove horas quando o velho Ícaro pediu para descansar. A janela permaneceu aberta e rangendo com a brisa fria do mar e, naquela noite, Ícaro sonhou com o seu herói.
contato do autor:
@oescritorlucas
Fonte: Antologia, A centelha, vol. 2, pág 45, / 2025, editora Cactus
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